quinta-feira, 28 de maio de 2009

Todas as cores

Espero o bonde amarelo que vai me levar até a parada localizada no início da Árpád Híd. É a primeira vez que vejo o tempo nublado aqui, o céu tem uma sombra de cinza que eu não conhecia. No meu mundo toca Foo Fighters, 2005.

À minha direita, uma senhora idosa vestindo uma saia preta florida ostenta um coque bem feito em seu cabelo grisalho e maneja com destreza - em que pese suas luvas brancas de crochê - um i-pod ao qual escuta com um fone de última geração. Me viro pelo ruído alto de um tipo de skate articulado guiado por um rapaz esguio que cultiva um rastafari loiro até a altura de onde está seu cinto, quase no quadril. Acompanho-o com o olhar até que outra cena me captura. É um mendigo de costas para a rua, que, com os joelhos sobre o cordão e os pés pairando no ar, ladainha incansavelmente "por favor, me ajude, por favor". Ele também é alvo de atenção do senhor de meia-idade com paletó desarrumado que segura uma pasta executiva da qual brotam rosas de cor champagne que, deduzo, ele vai dar à esposa.

Dentro do bonde, duas jovens usando meias-calça decoradas riem alto e comentam algo em alemão. Ao redor vejo olhos de todas as cores: de negros intensos do turista asiático que lê atento um cartaz com o itinerário a azuis muito claros da ruiva cheia de sacolas do Tesco; também variados tons entre o verde e o castanho. A loira de tranças lê de pé um livro escrito com alfabeto estranho e no fundo um indiano fala ao telefone com seu inglês muito carregado.

Chego na ilha ainda com um resquício da luz direta do sol que dá seus últimos suspiros entre uma nuvem e as colinas do outro lado do rio. Patos nadam rente a margem sob o lilás que se vê no lado oposto do horizonte. Sigo à esquerda, no caminho oposto ao fluxo principal que prefere dar a volta na ilha no sentido anti-horário. Movimento calculado: queria mesmo ver os rostos e as rugas. Cruzam por mim dois ciganos que discutem algo enquanto fazem gestos veementes. Muitos caminham, a maioria corre; poucos andam calmamente como eu. Mais a frente há um jovem sentado num cais com as pernas cruzadas fitando o nada. Não é preciso vê-lo de frente pra saber como se sente: the deepest blues are black.

Desvio um pouco pra ver a minha árvore predileta, mas dessa vez não me aproximo: um casal sob ela tem uma discussão. Ela chora, ele se desculpa. What if I do? Ouço acordes no intervalo de uma música e outra; saio da bolha criada pelos fones que eu usava pra procurar a origem. É um som que vem da fonte perto da entrada oposta da ilha; me aproximo pra assistir um pouco o balé das águas que dançam ao som de Johann Strauss, nada mais adequado.

Retomo meu caminho, agora já fazendo o retorno em meio ao verde escuro das árvores refletido no pequeno lago central. Já são quase dez, mas sigo ainda com alguma luz no céu. O vento, agora forte e frio, corta minhas canelas desprotegidas como uma navalha. Razor. Volto pra casa pensando na senhora do primeiro parágrafo e como aquela cena poderia ser uma alegoria sobre a atual realidade húngara. Começo a achar que era...



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Tive uma manhã burocrática no escritório de imigração e no ISP da Corvinus. Dedos ainda cruzados...

2 comentários:

  1. Toda essa descrição rica me lembrou do meu atual livro de cabeceira: "A menina que roubava Livros"... sempre há uma grande ênfase nas cores e natureza das coisas.. coisas que geralmente só alguns são capazes de ver.

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  2. Um verdadeiro observador!

    A propósito, que cena mais cosmopolita descrita no início do texto!!! Muito tri!

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